sábado, 28 de junho de 2014

Buakow Buakow

As galinhas e os galos circulam livremente pelas redondezas do ringue, esgueirando-se pelo tartame azul e vermelho queimado pelo sol. A ferrugem pinta aqui e ali, entre os cantos da tinta descacada e desbotada. As instalações sanitárias do Lousada sec. XXI, à beira do buraco no chão e da parede de tijolo rebocado pronto a receber urina do Island Muay Thai Koh Tao, eram um verdadeiro hino à higiene e à fragância à lá Ambipur - quem as conhece, pode conseguir então seguir com a comparação, deixando para vós todas e quaisquer ilações retidas desta metáfora.
As caras queimadas, escondem nas rugas as cicatrizes dos joelhos e cotovelos encaixados com veemência e rigidez, no calor dos bhats, das luzes, do alcool e das mulheres. Mais de cento e setenta combates. Olhos vazios, vidrados lá atrás, nas vitórias e em Bangkok, bastante longe do que é Koh Tao e da rotineira vida de treinos, pautada pelo estrangeiros que aparecem para descobrir ou aprofundar a arte das oito armas. Uns conseguiam disfarçar a frustração, outros descarregavam-na no treino, alguns nem uma coisa nem outra, estavam-se bem a cagar. Tive sorte com o treinador. Franzino, mas "me, strong strong, dedicado ao ensino e com bastante sentido de humor. Um Nelson longe de casa.
Sete e um quarto e já não consigo dormir. A excitação domina-me. Mais um treino matinal, mais um pequeno almoço à meia noite de Portugal continental, mais uma ida ao purgatório. Corda, aberturas, sombra, plastron, plastron, plastron, água, plastron, toalha e água, sparring, alongamentos. A intensidade do treino, conjugado com a humidade e temperatura, eram capazes de verter dois litros de suor. Eram pelo menos dois litros de água de manhã somados a outros dois da parte da tarde. Sempre a dar bita, e a tentar aproveitar o ensinamento e a oportunidade. Os nós das mãos já estavam esfolados, mas as pancadas tinham de ser fortes, no sítio, sem hesitar. Era para isso que estavamos ali, para ficar parado e tranquilo ficava em casa a atirar cavacos - estava dentro, tinha de levar com eles. Sorriso na boca, canelas massacradas, ombros doridos, e pé ante pé, o percurso ia sendo feito com a pacatez do dever cumprido, e da certeza que este periodo faria parte da memória. A paragem para comprar o mixed fruit shake, a azafama controlada da única rua com comércio e coisas que se vissem em toda a ilha, a chegada à SB Cabana, e, entre a madeira com fraco verniz, empilhada em forma de cabanas viradas para o mar, via um braço a dizer adeus, um vulto que sorria lá ao fundo, meio dentro meio fora, à filme, em foque perfeito de manhã, em contraluz ao final do segundo treino do dia, como manda a regra das cenas em câmara lenta e em contraluz que hollywood tão bem domina.
E era assim, que na água, pedia à Ana para não dar pancadas - nem na brincadeira - nas canelas, para poder guarda-las para mais sessões nos dias que se seguiam, com a água salgada a sarar hematomas.
Era bom demais, rotineiro e pacato demais, para quem tinha andado tipo salta pocinhas, em paragens de um ou dois dias, durante três semanas, mas uma semana de interregno total, entre as idas aos treinos e as tardes passadas na água, entre corais e a areia argilosa, trouxeram a tranquilidade que faltava.

Linda Martini - Volta








sábado, 14 de junho de 2014

Shenna, o principe guerreira

Os peixes aproximavam-se das canelas e dos braços à procura de tecido morto, vindo em vagas, sempre que nos encontrávamos estáticos, a flutuar na água transparente e opalina. Com o sol descoberto, víamos bem até os sete metros de profundidade, numa visão que vicia pela cor e tranquilidade, mantendo-nos estarrecidos, enquanto a latência da nossa respiração nos embala. Apenas faltava aquele narrador - Eduardo Rego-, com o tom pausado e pomposo que o caracteriza, falando-nos no espectro da BBC vida selvagem.  No inicio, a historia de andar com o nariz tapado e um tubo encaixado entre os dentes, fez -me engolir umas litradas de agua salgada. Tal como a aprendizagem da natacao com o juneca em Paredes, a partir da aflição e com a cautela de não me afastar demasiado do barquinho, lá encontrei a calma para flutuar e apreciar. Incrível. Podia tentar apontar os peixes numa caderneta de cromos, ou comparar as imagens dos corais com as que via na Sic, ao domingo de manhã, em casa da avó Mariazinha, alternativa às missas da tvi e do alternativismo da dois, enquanto mastigavamos um pão com ovo estrelado.
Alinhamos num taxiboat à volta da ilha, com malta que tínhamos conhecido. Regateamos e fizemos a dança do costume, de posto em posto, na caça do melhor preço. Ao Remi e Agatte, juntaram-se outras duas parisienses e o Robin, que tinha conhecido num treino aquando a chegada à ilha. Ninguém tinha pressas ou must dos, e perante tal falta de exigência, o que veio à rede era peixe. Como diz o outre, o que vier morre. Rapamos a fome de água, sem grande coisa para comer a nao ser as oreo que levavamos no saco xpto que nao metia agua - supostamente. Quando voltamos de uma paragem, o nosso motorista estava a fumar um bongo com outros tantos motoristas na embarcação do lado. Vinha meio Genésio mas o calo era tanto que o bateaux até rasgou alcatrão.
Foi este passeio que reforçou a ideia de que a ilha era o lugar ideal para descansar, treinar e sair. Ir a Koh pa nGhan para a full moon party podia esperar outro ano, e as koh phi phi a um dia de viagem e com chuva, poderiam aguardar uma visita de si mais pausada. Já tínhamos corrido muito. No fim da maratona, anda-se a ritmo lento para baixar o batimento cardíaco. Era começar a fazer picos pela ala para rebentar no placard da Gillete ou Rexona lá ao fundo, à la José bosingwa, sem olhar para área, remate em forca contra o espectador atento. Pe direito cego e o esquerdo nao ve.
Nesse dia fomos todos jantar. Parecia que todos se conheciam há bastante tempo, tal era a cumplicidade. Acabamos num show de lady boys, formato chuva de estrelas, com direito a playback, e, caso o freguês tivesse tomates, lap dance e afins. Entrada livre mas com bebida a custo de bar de meninos, lá consegui dividir uma cerveja de cinco euros com a Ana. Deu para perceber que a cena do trainspotting no banco de trás do carro, por estes lados há de ser mato. Ney Matogrosso. Algumas, com o barulho das luzes, juntando uma carroça cheia à travessia do deserto, adquiriam jogar no Balazar, dentro de muitas normas e standards europeus. Brace yourselves, Winter is coming. Houve quem dissesse que já tinha comido pior e a pagar. E a Asae não ia meter o bodelho no bizz.
A ilha foi esvaziando.
Tínhamos sempre pé e quase que nos sentavamos antes da orla de corais que forrava toda a frente de mar da sairee. A palmeira lá do quintal era das mais requisitadas para fotos, e das que mais sofria com turista burro a trepa-la. No inicio tambem fomos burros a querer trepa-la, depois ficamos normais outra vez. As palmeiras, com sede de vinganca, ainda nos tentaram partir a cremalheira com cocos lançados à má fé, aquele biqueiro que dás no mosh pit, ao calhas mas a saber que é pro mesmo que te acertou com o cotovelo no sing along da malha anterior. Um desculpa lá mas foi de propósito. Ainda bem que caíram ao lado. Quase que deram agua de côco vermelha e grates.
Falando de KOs, o combate no sairee stadium teve dois portugueses da equipa de muay thai do marítimo. Gente boa onda e prestável. Ganharam os dois combates, e, só comigo e com a Ana na bancada, já pareciam estar a jogar em casa. Só faltou berrar golo ou falta. Os palavrões e as palavras de incentivo estavam todas lá. Até ficaram confusos ao ouvirem tanta palavra de carinho, enquanto ritmavam a distribuição de bufetadas a torto e a direito no ringue. O Arara fez um knockout com quatro joelhos seguidos, o um ultimo com um clinch perfeito. O lutador tailandês adormeceu e foi caso de policia para o acordarem. O Alberto Joao veio dizer que era valido, que estava tudo dodo, e que portantos, havia de seguir o carnaval que a vitoria era nossa. O Ingles que foi para o combate a pensar que ia fazer boxe britanico, levou uma penhanha pela direita que nao so caiu redondo, como se foi cruzando conosco durante o resto da estadia, com um olho a belenenses que nem o Jesus, nos tempos aureos em que nem na playstation ganhava ao fifica, tinha feito melhor. Ca padrada.
À parte de tudo, demos por nós a pensar, enquanto a cabeça estava fora de água, na categoria de lugar e pacatez de vida - ócio diria Pessoa, nem posso acreditar dizíamos nós. Ao fim de alguns dias da rotina de treinos, praia, pizza, chang fresca, panquecas com banana, fruitshakes e caminhadas, parecia que já lá morávamos há meses.
A palmeira e o mar continuaram bonitos, apenas menos surpreendentes que no início.
Hoje fugimos para sul, para ver as torres da Bilonia, quem la vai nunca mais torna, em Kuala Lumpur.

Stereophonics - Maybe Tomorrow








quinta-feira, 12 de junho de 2014

A Cabana

A cortina move-se, irrequieta, contra as paredes azul bebé. A porta abre de vez em quando, forcando o trinco, com a ventania que assobia lá fora. Quando isso acontece, vê-se o mar e as palmeiras na vibração constante da tormenta. A monção aproxima-se, a agua está mais fria, o sol mais tímido e a ilha está a ficar deserta.

Chegamos a Bangkok. Para trás ficara a fronteira e o stress de manter o passaporte sempre em lugar palpável e no limite do alcance. Fui barrado no controle; tinha de ter morada na Tailândia. A Ana passou sem problema. O francês que estava comigo também foi retido. Antes que fosse motivo de azáfama, peguei na caneta e colocando o passaporte como suporte para o pequeno papel de arrival, escrevi Orchid Hostel Bangkok. Nestes casos, há sempre um hostel com nome de flor, ou de planta, ou floresta numa metrópole asiática. Bate sempre a cara com a careta. O outro frances, passar ate passou, mas quando chegamos ao outro lado, o estafeta recusou-se a transporta-lo porque o franciu também se havia recusado a colar um sticker na t shirt para ser identificado como ilegível para o resto da viagem. Acontece sempre em viagens com vários operadores e passagens de fronteira. O casal de amigos que seguia conosco desde Siem Reap e com os quais acabamos por travar amizade, não se meteram na conversa. Nós íamos dizer qualquer coisa, mas qualquer coisa nestes lugares pode significar a diferença entre vir embora ou ficar também apeado. E foi ai que nos explicaram que o Francês começou a guerra já no Cambodja, porque tinha pago para vir num confortável autobus e não numa minivan da década de oitenta. Devia ter uma costelinha e um gosto pelo déjà vu.
Em Bangkok ainda lambiamos as feridas das horas de sardinha em lata, sentados por cima da botija de gás- CNG-, sem posição possível para adormecer. Nem com um Valium nem com chá de frutos vermelhos.
Foi visita de medico, em mais uma mega cidade asiática, com mais fumo e esgoto, gente e gente e mercados e tucs. Visitamos um templo, comemos um pad thai, bebemos um mango shake e fizemos as compras da prache. Era hora de marchar para sul, para as ilhas. Apanhar sol, fazer praia e fazer uma semana de treinos sem caneleiras - rebentei hoje, ao nono treino consecutivo.
Apanhamos o mesmo bus que os nossos amigos franceses- ficamos a saber que eram de lá Rochelle, e lá falamos do Steve de robot orchestra e de lá sirene, boa memory lane-, e dois transfers depois, esperávamos pelo Ferry para Koh Tao. Vestinos a nossa cara mais nova, aquela dos bailes de finalistas, dos shots infinitos, da música techno mega mix, e fomos numa caravana para Loret del Mar, com o barco a abanar para xuxu, e a galera maluca a cantar e a beber fuckin crezy nightz. Estava morto, e comecei a ameaçar virar o barco no xerife que ia ditando a procissão. So percebeu quando lhe pedi um saco. Era tipo o dinheiro ou a vida, neste caso, à lá rei Herodes, ou te calas ou te fodes. Se não tinha saco levava com um mix shake de oreo batata frita e cola, a ementa que figura nos anais de qualquer viagem noturna. A ana também estava irritada. Pensava que vinha para uma ilha deserta, naufrago style, comigo a fazer de bola Wilson. Consegui ler-lhe nos olhos a vontade de afundar o barco, longe da costa, longe de terra. Era exclusiva a ilha, paraíso perdido a troco de tostões, e mais ninguém viria para cá. Claro que não. Nós até fomos os primeiros a lembrarmos-nos disto, mais ninguém sabia. Quais descobrimentos quais homeros.
Há sempre os artistas que promovem o convívio entre os demais, seja berrando um pouco mais alto, ou dando encontrões, ou até roubando garrafas de tequilha a outros borrachoes. Aqui não havia um nem sois nem três. E não eram poucos, bastantes. Era uma autentica academia de ninjas do barrio, cada qual com o seu secret move and quote. Uns mais british english, outros dos states, alguns mal falavam, varios mal abriam os olhos. Mas eu no papel de coveiro não fui atrás deles. Eram em numero suficiente para me encherem a maleta, e a cena de fiesta era o setting, nós é que estávamos a mais. O problema não és tu, sou eu.
Terra firme, orientamos um bungalow, com paredes de papel, chão em tabuas de madeira com folgas de centímetros, porta com aloquete mais resistente que a dobradiça e uma varanda que dava para duas pessoas. Alias, todo o palacete dava para duas pessoas com pouco peso. Ou apenas um Hermano José. Mais que isso dava tragédia. Não era preciso nem tsunami nem lobo mau para deitar a Cubata a baixo.
Seis euros por noite com vista de postal. So faltava o Jamiro e o carvan para a barbecua.
Decidimos ficar o resto da semana e deixar os ferrys e camionetes em standby. Já tinham sido mais que suficientes, era hora de descansar. E dar umas pedradas no saco, comer pizza e fazer chop chop.
Podia até pedir as baleias do Roberto Carlos, mas esta é do José.

José Cid - Cabana





segunda-feira, 9 de junho de 2014

Ser o macaco do zoo

I sorry my friend but I cant pick you! My mother is sick and i went to hospital.
Who's this?
I sorry my friend.
What the fuck are you talking about? Are you the pickup for the bus? Bus to bangkok at 6:00am?
I sorry my friend, no english.
No english um, e no english o outro que me tinha entregue o nokia - 3310 - para falar com o morcao que tinha a mae doente no hospital e por motivos não podia vir buscar alguém ao hostel. Só quando começamos a parle com gestos e caras feias, é que o morcao da cereja que tinha parado o tuctuc à hora em que supostamente íamos ser rebocados para mais uma infernal odisséia, disse angkor wat em vez de Bangkok. Afinal ia buscar mais um turista para ver o nascer do dia em Angkor. Não resolvia o meu problema de falta de transporte, só resolveu o hipotético de não ter mesmo transporte porque a mãe do outro estava no hospital. Sorry. No english.
Assim terminou a aventura de Anita na floresta. So fui como assistente de produção. Rebobinando, de Saigon ficou uma curta passagem, fast pace, pautada pelo engano da recepcionista do hostel, quando nos informou que tínhamos ligações para Siem reap a pontapé, hora sim hora sim. Como a grande parte da informação aqui adquirida, e como diria Joao Pedro Pais, era mentiraaa. Empurramos as roupas para a mochila, aguentamos com o banho da noite anterior e engolimos uma omelete com pão seco a custo de picanha do Brasil. Pagamos sempre a ocasiao, seja aqui ou em santa comba dao. 9:00 e entravamos e mais um expresso, sem pinga de turista. Havia de correr bem, mas so apetecia mandar tudo para corner, como diria Clemente com insatisfação. Pelo meio paramos em phnom penh, recarregamos a bateria do tlm para a candy crush saga e trocamos os Dongs que tinham sobrado por Riems.
Esta foi a lost estrada nacional de Lynch cambodiano, esburacado como a ciciolina, perfurado como uma esponja, derretida como trang bang - fizemos a highway 1 de Saigon até à fronteira, revisitando o local do bombardeamento de napalm, que acidentalmente criou a imagem de uma guerra sem norte nem sul, the girl in the picture-, noite fora, noves fora também, dor de cabeça e fome de bola e esticar pernas e costas, com a coluna a torcer sempre que havia mais um salto sem para-que das. Arrivamos tarde e com um apagão generalizado em Siem Reap, num episodio de The walking dead, sem cowboy, só ladyboyz e meninas da rua, de braço esticado e perna arqueada, olhos vidrados num oito. Nossa, que bio-lência.
Partimos cedo para Angkor, para nos perdermos num complexo gigante de ruínas que se imaginam transcendentes para época, ao ainda o serem, hoje, tão megalomanas. Dá para ter uma ideia, de nós, e do que temos feito. A pedra emparelhada é tao antiga que as árvores pisam e galgam muros e palácios com a força e aspecto de dinossauros e anacondas, serpenteando numa fábula que apenas quem testemunha in situ, consegue perspectivar. Não é o Mosteiro de Paço de Sousa, nem sequer próximo do Convento de Tomar. Até comparando com o panorama Europeu, é difícil encontrar um aglomerado de construcoes maioritariamente feligiosas, que se estendam no territorio com uma escala identica. Em quase oito horas, olhamos - sem visitar com cuidado - para cinco templos. Era muita fruta para a Carriagem que já ia cheia, de cansaço, fotografias e working tourism. Mas o mais importante e notório era o sentimento de impotência perante a natureza e a sua ocupação, pé ante pé, de tudo aquilo que se havia intrometido no seu âmago. Se a pedra fora assente, e de algum modo quem a assentou desapareceu daquele lugar, como sociedade vigente de notório poder e influência, uma nova camada superou a anterior, como a barba que é cortada com a cadência matinal da que cresce enquanto dormimos. A visão do apocalipse, coisa do capeta; a potencia insuperável dos irrepetiveis passos dados em falso, quê terminaram com um vazio, agora perene, no qual, para coincidência e ironia das ironias, somos nós outra vez, a vermos o museu da auto destruição, capitulo no qual conseguimos ser exímios trapezistas de circo. Espectadores da extinção. Sentarmo-nos em Angkor, algures no meio do arvores e muros e ruínas infinitos, a olhar as pessoa a passar, paulatinamente fotografando r apontando com o dedo, é como mirar a jaula dos macacos, ou ser como macacos dentro do zoo, num espelho em mirror ate ao fim, em repetição, chamem-lhe cue, loop, disco riscado, o que quiserem.
Era incrivelmente belo, assustadoramente solitário, na razão entre o envelhecer e o desaparecer, nesse equilíbrio, delicado e finito.

Both Worlds - hate mantra




segunda-feira, 2 de junho de 2014

Faquirs do asfalto


Como diria Dr.Pedro Cardoso Ribeiro, ca Vietname que para aqui vai. Duas horas de espera por uma camionete que já trás no pack outras vinte e quatro até Saigon. Fomos para a cozinha, pedimos um canivete emprestado ao individuo quase albino que partilhava o beliche com a malta e lancamos mao a obra. Era o cavaleiro da Dinamarca. Basicamente tínhamos comprado fruta, e não, não a podíamos ter descascado lá fora na tranquilidade, ou e dificil ou nao vale o esforco. Deu a fome de manga já dentro da carripana, tipo miúdos com sono que não sabem o que querem. Dotes de faquiri e a borboleta até cantou a laminar manga enquanto subiamos aos trinta centímetros de cada vêz que lomba sim lomba sim, ditava a estrada perdida. Assim arrancava a especial Hoi An Saigon, desta vez com Armindo Araújo ao volante - temos tido a felicidade de encontrar ases do volante, aos molhos e ao molho-, a derreter a embraiagem, pneus, chassis e o que mais viesse, na tentativa de ganhar metros aos restantes veículos. Nem pregava olho com a noção de velocidade e descontrole, e quando pregava, so via as ribanceiras e as grelhas dos camions em sentido contrario. Ah Piloto. No dia anterior e sem que nada o fizesse prever, alem de coleccionarmos mais uma personagem digna de figurar no capitulo do Tamzid e Raymond, acabamos por ter um dos dias mais preenchidos so far. Percurso Top Gear entre Hue e Hoi An, de Motinha - plug and play, scooter maria maria I like it loud -, gás colado, paisagens de arrepiar e sentimento de libertação total. O Uy, além de grande guia, foi grande anfitrião. Começamos a emborcar pouco depois da partida, num tasquito de beira da estrada. Noodles e salsicha, sumo de cana de açúcar. Parecia que não comia há eras. E a sede era sempre mais que muita. Seguimos pelas lagoas e montanhas até as quedas de água. Por uma estrada estreitinha, e pensava eu que ia ser algo bastante privado, sem que nenhum sinal expectavel da futura troca de Bacalhaus e abraços. So faltou o discurso e a música dos vangellis a tocar no altifalante. Gente e mais gente, num acampamento que se ia espalhando encosta acima, ocupando-se das represas e das aguas em redor. Ate o grupo de artistas de variedades que entretinham a malta, quando deram pelas aves raras, começaram a destrocar os cantares à desgarrada e as cervejas, abracos, fotos, lombo e vitela, costelinha, franca espanha tudo, vieram ao nosso encontro. Em troca, so tivemos de dar o nome e o Pais. Calisto diziam eles! Cristiano diziam outros. As asual.
Foi dificil largar o spot, era bom demais. Cama a marinheiro e calorosa recepcao. Mas era tempo de zarpar para mais asfalto e percurso de montanha. O casal de ingleses ja sabia para o que ia, mas nos, no acidental acaso, nao faziamos ideia da brutalidade que nos esperava. O Top Gear ja tinha feito um especial Vietname por estas estradas fora, e um dos hotspots era a ligacao entre Hue e Hoi an. De partir a pila ao cavalo.
Eram as vistas, as varias praias, as aldeias de pescadores, e os tasquinhos. Paramos para tachar no Ramirinho de Pieres la do sitio, apinhado de gente e sem turistas, cena local, com mariscada e muito caril e chilli. Mais uma overdose, comida como mato, mais sumo de limao e mais comida. Sempre a levar com o ventinho na tromba, ate nos esquecemos do escaldao que ia nascendo nas pernas e bracos. Estava tudo incluido no que preco acordado. Once more.
Este Pais tem destas coisas incriveis, lugares de tirar a respiracao, completamente esquecidos do mundo, sem placards turisticos, sem menus em ingles, sem nocao mesmo. Uma vida pacata, ligada a agro pecuaria, a pesca, a tudo aquilo que na Europa foi esquecido e trocado pelo hipermercado, pela hiperfabrica, pela hiperrapidez, pela hipercomunidade europeia, pelos hiperfundos, pelos hiperapoios e hipermerdas. Que se foda a nossa sorte, a higiene e seguranca no trabalho, os subsidios, os seguros, a perspectiva de vida. Por ca tudo esta ao contrario, e ninguem parece importar-se muito com tal coisa.
Podia tentar espremer mais as palavras para transmitir o transcendente da coisa, mas nao esta facil. Lembrou-me a estrada entre Porto e Entre-os-rios, com os separadores velhinhos caiados de branco e vermelho, so asfalto, mato e rio. A meio do caminho passamos pela nossa camionete da Camelo Viagens, a que supostamente perdemos no dia anterior e voltamos a perder, desta vez propositadamente, para fazer este troco com a calma necessaria para levarmos mais vietname para casa.
Chegamos a Hoi An com as lanternas acesas, na vila tudo parecia de uma escala de aldeia, sem grande compromisso com o turismo, com tudo mais intenso que noutros lugares que tinhamos visitado, mas sem estragar o ambiente altamente pituresco da ria, da ponte e das casinhas de pescadores, com o centro imaculado como em qualquer cidade da Europa que esteja habituada a receber gentes la de fora. 
Voltamos as horas infindaveis de sleeperbus, sendo a mota ja uma miragem no horizonte, e as series e filmes chineses com traducoes terriveis em vietnamita, bombadas com decibeis a mais para quem quer dormir, mais o motor e as reducoes rompantes do piloto, a soarem como sorround impossivel para poder ouvir as cantigas que trouxemos para a viagem. 'E um constante all in, do ou comes ou deixas na borda do prato, com a diferenca que nao tens muito por onde escolher, ou comes, ou comes com duas chapadas e nem piu.
Chegados a Saigon, nem napalm consegue tirar as comichoes e matar o acaro que vive em campos de refugiados espalhados pelas canelas e costas depois de tanta paisagem vista janela fora em lugares que vao transformando ao longo dos kms, de albergue a 2001 odisseia no espaco. 
E apesar de tudo ser idilico ate ao ponto em que doi - nunca sabemos ate onde aguentamos o passaporte no bolso ou a comida nao fura a parede gastrica-, e'  sempre bom manter a cautela com becos que se transformam em fornalhas a ceu aberto, sedentas de carne ocidental, mais tenra, menos acostumada, supafresh e com cartoes e carteiras prontas a debitarem dolla dolla.
Viagens assim dao trabalho, mas so o suficiente para podermos ver o que vemos e sentir tanta coisa que se torna impossivel guardar tudo bem guardadinho no sotao dos recuerdos. 
D'a vontade de carregar no pause ou no stop , voltar para a vida rotineira e real de Penafiel, e quando estivermos novamente cansados da repeticao - como levar a sandes para o estadio, bem guardada no bolso do casaco, e ir comendo ao poucos para nao matar a fome toda da mesma vez- voltar a carregar play e respirar mais um bocado de ar puro e mistura enquanto se mastigam os mesmos noodles de ha quinze dias para c'a.




Cold World - Copernicus